segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Vietname - Norte 3: Sapa

3. Sapa
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Outra vez em Hanói, apanhámos o comboio da noite para Lao Cai, no extremo norte do Vietname, onde chegámos ao princípio da manhã. Chovia. Depois de um café forte e de sabor muito peculiar, apanhámos aí o autocarro local para Sapa, o nosso destino. Vivemos então a segunda peripécia de contornos mais ou menos perigosos. Logo que saímos do comboio tínhamos sido abordados por vários senhores que nos ofereciam os seus serviços de transporte em mini-autocarros. Recusámos e fomos para o café em frente da estação, seguidos ainda assim por dois ou três "angariadores". Quando finalmente optámos pelo meio de transporte mais popular (porque eu prefiro viajar com o povo local), um deles seguiu-nos e, já em andamento, foi cobrar-nos o bilhete, de valor 100% superior ao dos outros passageiros. Preparávamo-nos para pagar, já que nestas terras é procedimento comum cobrar aos turistas o dobro ou triplo do valor normal. Aparece então nesse momento um senhor de feições quadradas que impôs o respeito, não tanto pela expressão austera e pelo porte temível, mas pela agilidade e certeza com que expulsou o "angariador" pela porta do autocarro ainda em andamento e lhe parece ter dado uns abanões (imaginei eu pelo alvoroço dos passageiros, não por que tenha conseguido testemunhar). Ficámos no lugar à espera, a postos para sair a correr, a pensar se seriam os nossos colarinhos a ser arrastados a seguir... Já dentro do autocarro, o justiceiro de cara quadrada veio apenas cobrar-nos o bilhete, exactamente ao mesmo valor do cobrador anterior... mas suponho que este fosse o cobrador oficial. E lá seguimos viagem pelo monte acima, até Sapa, onde também chovia.

As roupas que as mulheres H'Mong usam são tingidas com anil (índigo), mais famoso por dar cor à ganga. Há várias plantas que podem ser utilizadas para a coloração azul; esta é uma delas. Determina-se o tom de azul através do tempo de tingimento das peças. As plantas ficam de molho durante uma semana e só depois se mergulham os tecidos durante o tempo necessário para o tom de azul que se pretende.

A maravilhosa Na
Logo de manhã, enquanto esperávamos o nosso guia Zom (escreve-se "Dung") para o percurso pedestre de dois dias que iríamos fazer a uma aldeia montanhosa da zona de Sapa, já esta menina de 11 anos, chamada Na, estava atarefadíssima a cumprir o seu trabalho de venda de bugigangas, feitas pelos mais velhos nas aldeias para as mulheres e meninas venderem em Sapa: pulseiras, brincos e sacos feitos à mão. Nessa altura, já eu me tinha cruzado com tantas outras mulheres e respondido ao mesmo alinhamento de perguntas que todas aprenderam a fazer aos turistas: como te chamas?, quantos anos tens?, de onde vens?, és casada?, tens filhos?, quantos irmãos e irmãs tens?, que idade tens?, és muito nova... A Na pareceu-me logo mais determinada do que as outras, mas eu também estava determinada a aprender a dizer que não e pratiquei logo ali com ela. Ela ficou visivelmente desconsolada. Quando o Zom chegou, iniciámos o caminho a pé para fora de Sapa a caminho das aldeias onde vivem algumas das muitas (cerca de 50) minorias étnicas do Vietname: Black H'Mong, Giay, Day, Dao, Red Dao... A maioria das mulheres que vendem coisas em Sapa, incluindo a Na, pertencem à primeira categoria. Por coincidência ou não, a Na e uma mulher chamada Su acompanharam-nos, já que a aldeia delas ficava no caminho do nosso destino, uma outra aldeia chamada Ta Van, onde iríamos pernoitar. A Na e eu aproveitámos para conversar pelo caminho. E digo conversar, porque ela tem um inglês impressionante, aprendido apenas pelo contacto com os turistas, e uma atitude diferente das outras... pelo menos as perguntas vão mais longe e, por isso, a nossa conversa também foi. A Na explicou-me algumas das tradições da sua comunidade, por exemplo a de serem os pais a escolher os maridos às filhas, fazendo arranjos de casamento quando elas têm apenas 15 ou 16 anos. A Na explicou-me que ela não quer que lhe escolham o namorado nem que a obriguem a casar tão cedo. Ela quer encontrar um namorado aos 18 e casar aos 20, por amor. Também me explicou que gostava da escola mas este tinha sido o seu último ano, porque é normal que todos ajudem a família e a Na não se importa nada de fazer a sua parte. E lá descemos em direcção ao vale, numa conversa animada. A Na é uma menina linda, de personalidade forte e decidida, e eu não estou preocupada com o seu futuro. Não penso que haja qualquer razão para ter pena dela ou da sua família. Acredito que pode ser feliz assim, acredito que o será. Ela vai conseguir fazer o que quiser. Tive pena de dizer adeus à Na... ela deu-me o seu endereço de correio electrónico (!) para lhe enviar as fotografias e, quando me viu ao longe pela última vez em Sapa dois dias depois, voltou a dizer-me "não te esqueças de me mandar um email!"; claro que já lhe enviei um email cheio de fotografias e estou convencida de que um dia destes ela me responde. E claro que lhe comprei uns brincos e uma pulseira e vou lembrar-me dela e sorrir sempre que os usar.
Gostava de voltar a ver a Na um dia.
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O passeio de dois dias nas aldeias de Sapa foi um dos momentos altos da minha viagem. Aprendi coisas interessantes sobre a cultura destas minorias e invejei várias vezes o seu estilo de vida simples, dedicado à agricultura e pecuária, numa comunidade unida e afável, igualitária e aparentemente justa e generosa. H'Mong significa "pessoas livres". Eu acho que o são, apesar de preferirem ficar onde estão, como estão. Várias vezes me questionei se a constante presença de turistas com as suas ideias estranhas não lhes influenciaria as ambições, não os levaria a querer mais... mas querer o quê? Alguém disse que "a pessoa mais rica não é a que tem mais, mas a que precisa de menos".
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Durante metade do ano cultivam arroz nos socalcos, um método imposto pela paisagem e bem diferente e certamente mais difícil do que o dos arrozais amplos que vi nas outras regiões; durante a outra metade dedicam-se a um cultivo variado. No jantar na casa da aldeia, a jovem mulher da família cozinhou para nós, 11 turistas. Existe um acordo entre o Turismo e algumas famílias, que são pagas para receber turistas e conviver com eles. Gostava que o convívio tivesse sido mais real, porque afinal a jovem senhora esteve a servir-nos em vez de se sentar connosco... teria sido interessante conversar mais com a família, apesar do pouco inglês que falavam. Ainda assim, foi uma noite interessante. Havia várias raparigas da minha idade no grupo, viajantes solitárias cujos caminhos se tinham cruzado; fiquei agradavelmente surpreendida com a quantidade de mulheres que viajam sozinhas na Ásia, sem qualquer problema. Serviram-nos um saboroso vinho de arroz (aguardente de 35% de volume, para ser mais precisa), feito caseiramente cozendo o arroz e deixando-o em álcool durante 15 dias.

Algumas curiosidades da comunidade H'Mong: Aos 15 anos, arranca-se um dos dentes incisivos e é colocado um dente de ouro no seu lugar, como símbolo da passagem para a idade adulta (este costume é exclusivo das mulheres, porque os homens são emancipados "por natureza"). O casamento é decidido pelos pais e pode acontecer a partir dos 15 anos, sendo o "prazo de validade" os 20 anos. Os costumes obviamente variam de etnia para etnia. Por exemplo, as vizinhas Red Dao, facilmente identificadas pelos lenços vermelhos que usam na cabeça, passam a rapar as sobrancelhas quando se casam. Quando reparei que várias mulheres, mas não todas, tinham uma marca vermelha na testa, perguntei por quê. É um tratamento "analgésico" para as dores de cabeça. E uso aspas na palavra analgésico porque esta aspirina caseira consiste em colocar carvão em brasa dentro de um corno de búfalo e usar depois o corno para queimar o centro da testa... a marca sobrevive muito tempo à dor de cabeça. Suponho que a dor da queimadura na pele distraia a paciente da encefaleia... ou talvez haja uma explicação científica. O meu guia Zom achou que eu devia experimentar um dia! Aprendi muito em Sapa, mas nem tudo é compatível com a vida normal...

A seguir, Laos: 1. Vientiane

O álbum completo da viagem ao Norte do Vietname:

2 comentários:

Sandra Martins disse...

Ola Isabel.
É bom descobrir-te pelo Oriente e acompanhar todas as descobertas maravilhosas que relatas no blog que visito pela primeira vez.
A única coisa que senti foi muitaaaaaaaaaa inveja, daquela que é saudável e dá alegria à vida e vontade de seguir em frente na vida e lutar pelos nossos sonhos.
Continua!!!!!!!! a viajar muito e bem.

Sandra (lembras-te do Euro 2004!?)

graça seco disse...

Muito obrigada Isabel por me permitir prolongar as férias com tantas e fantásticas viagens!!!

Adorei os seus textos e fotos.....aliás como já é seu hábito!

Continue a aproveitar o melhor que puder.

Abraço e ate breve
Graça Seco