sábado, 13 de junho de 2009

Reflexão forçada, ou a China à chegada, ou como é mais seguro não esperar nada...













No princípio era uma ideia, vaga no conceito e vazia no interior. “China” era apenas outra dimensão, uma entidade verídica para as pessoas no mundo do lado de lá, do lado leste, do lado onde nasce o Sol, lá para os lados das vistas amarelas douradas que povoam a imaginação ocidental de modo tão iludido, tão embaciado pelos juízos e superstições que julgamos não ter.

Mas a ideia era nada. E não era minha. Era dos livros e revistas que leio obliquamente, na pressa de saber. Era da Internet e das suas mensagens circulares, que me chegam regularmente vindas de todos os lados menos do oriental. Era da televisão, das reportagens tantas vezes obtusas apesar da tentativa de isenção; das imagens reais tantas vezes arredondadas, por defeito ou por excesso, na geometria imperfeita dos acontecimentos. Era da cultura presumida de que falamos como certa e exclusivamente nossa, inabalável e infalível.

É preciso sentir para saber. É preciso ir lá e cheirar o ar saturado de histórias ditas na primeira pessoa; apalpar os dias desde o nascer ao deitar do Sol e perscrutar as gretas das mãos de quem habita a vida real; distinguir as cores e as suas transformações à luz dos diferentes sóis das horas do dia; saborear o agre e o doce das coisas nas papilas insuficientemente gustativas das bocas abertas de espanto, pasmadas pela surpresa da descoberta, pela estranheza do outro… É preciso estar lá e ouvir o que dizem as calçadas pisadas por passos rápidos no anonimato da multidão, sentir nas mãos o calor das pedras como bocadinhos de lume; olhar em plano ampliado o que antes vira apenas do espaço, ver com a lupa empirista o que antes lera apenas de cabeça inclinada nas lombadas dos livros das bibliotecas.

Então eu vim. Cheirei as essências, apalpei as mãos e as pedras, estudei cuidadosamente as cores e os feixes de luz da manhã e do fim da tarde, senti o paladar das coisas e o sabor picante do descobrimento do outro, ouvi sons imperceptíveis e decorei sensações únicas, fiz considerações metafísicas e compreendi o valor da diferença. Errei por ruelas e becos, pátios e caminhos sem nome, querendo divisar a polpa da aventura. Aprendi, enfim, como ser Eu do outro lado, na dimensão amarela da Terra. Já sem ilusões, mas ainda iludida pela emoção de saber as coisas na pele e não nas letras. Já sem a vista toldada pelo desconhecimento, mas ainda apercebida do que não sei. “China” tem agora razão dentro de mim, nas entranhas de quem sou, no âmago de quem quero ser. Já não me transcende, mas faz-me querer descobrir.

(Texto usado no concurso de escrita em português do IPM)

1 comentário:

graça seco disse...

Parabéns Isabel!!!

É maravilhoso acompanhar
a sua escrita tão envolvente, sensorial e emotiva.

Continue!!!

Abraço,
Graça Seco