quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

100 dias na minha rua, parte 2


Parte 2: Rua dos Mercadores, Rua da Tercena

Mas a minha rua fica, mais precisamente, no prolongamento da Rua dos Mercadores, aquela que se enche de lojas, de uma ponta à outra, e de gente de uma ponta à outra a tentar abrir caminho nos passeios estreitos onde não se pode parar nem um minuto. A mesma que me agudiza o mau humor matinal quando a percorro acelerada para apanhar o autocarro, lá ao fundo na Almeida Ribeiro, San Ma Lou para os locais.

No meio está o Mercado de S. Domingos onde vou comprar os legumes, a fruta, as flores e o peixe ainda meio-vivo para fazer para o jantar no meu forno comprado em segunda mão. Estão lá as lojas de roupa, as quinquilharias ao lado de 7-eleven, as farmácias chinesas incluindo aquela onde traguei o chá medicinal mais intragável da minha vida, bom para a garganta, o supermercado San Miu, mais lojas de roupa, um ou dois estabelecimentos de comidas (são raros os estabelecimentos de comida que se chamem restaurantes), louceiros e mais quinquilharias, lojas de artigos do lar, bancas de fruta, lojas de pastelaria chinesa, lojas de peixe seco e frutos secos, secados ao sol, uma papelaria... Já sei de cor a sequência, não porque a tenha decorado, mas pelos cheiros que sinto ao longe quando a percorro já menos acelerada no regresso, vinda do autocarro que parou na San Ma Lou: o cheiro forte do peixe e marisco secos secados ao sol, depois o cheiro suave das pastelarias, depois o cheiro mais intenso dos chás medicinais da farmácia chinesa...


Já quase a chegar à curva para a Rua das Estalagens, ao passar a Travessa do Soriano que me levaria ao Leal Senado - com as mercearias que têm artigos portugueses, como o Tin Une, a entrada para o mercado e as barraquinhas de roupa do lado de fora do mercado - está o edifício amarelo cujo amarelo muda ligeiramente de tonalidade dependendo da hora do dia a que passo. O edifício amarelo tem umas varandas verdes deliciosas e abandonadas, apenas com umas cortinas já em trapos a dançar com a brisa tímida que entra de quando em vez. Nas varandas verdes vêem-se ainda pendurados os suportes verdes dos vasos de flores e eu imagino as flores que ali floriram em tempos idos, as meninas que se assomavam para ver gente passar, as vidas que espreitavam de dentro do conforto do edifício amarelo, por cujas janelas se vislumbram agora caixotes que armazenam mercadorias das lojas que ocupam a rua de ponta a ponta. São muitos os edifícios assim em Macau, maravilhosos e desprezados pelo tempo, a descascar-se, perdendo uma lasca de dignidade a cada lasca de tinta que cai, a cada fenda que se abre nas paredes esquecidas e húmidas, a cada nova camada de pó preto a disfarçar os tons de amarelo, verde e rosa.

A Rua dos Mercadores acaba na curva da Rua das Estalagens, onde começa a Rua da Nossa Senhora do Amparo que, por sua vez, dá lugar à Rua da Tercena, a minha rua. Ou, vendo as coisas ao contrário, a Rua da Tercena "começa na Rua dos Faitiões, próximo do Beco dos Faitiões e do Pátio da Tercena, e termina junto às ruas dos Ervanários e de Nossa Senhora do Amparo. Diz Gonzaga Gomes que, antigamente, o mar chegava até à Rua da Tercena, pois o «vocábulo significa tulha à beira de um rio ou perto dum cais» (Luís Gonzaga Gomes em Curiosidades de Macau Antiga, citado pelo P. Teixeira na Toponímia de Macau, vol. 1, p,476)" - informação retirada do blogue Caderno do Oriente, um bom caminho para a descoberta de Macau.

A Rua dos Ervanários merece toda uma terceira parte da minha deambulação bairrista. É por ela que passo a caminho de casa, e de casa a caminho de outro sítio qualquer, todos os dias com o mesmo espanto da primeira vez porque todos os dias algo muda no humor de quem lá está a ver-me passar... A combinação dos génios, deles todos e do meu, dá à rua uma personalidade nova a cada passagem.




Deixando para trás a Rua dos Ervanários, então, vejo o prédio azul onde desde o início me surpreendeu esta loja de uma estilista (talvez portuguesa, não confirmei ainda) com entrada pelo Beco da Melancia, perfeitamente enquadrada na caricatura de uma rua tão típica e fabulosa, enquadrada talvez pela incoerência da sofisticação, assim lado a lado com os vendedores de rua, vendedores de chão. Mesmo antes do meu prédio, meia dúzia de vendedores de rua espalham no chão as suas mantas e aí expõem, sem grande sofisticação portanto, em frente da montra elegante da estilista, os objectos também incoerentes que têm à venda: artigos tipicamente chineses (porcelanas e pequenas lembranças com budas e tartarugas e animaizinhos híbridos com simbolismos auspiciosos, colares e pulseiras, minúsculos bules de chá...); DVDs, VCDs e revistas para todos os gostos mas especialmente para o gosto masculino; bugigangas várias que agora não consigo visualizar, tal o caos da montra derramada no chão; artigos de vestuário e calçado. Ao lado e, agora sim, perfeitamente encaixada no cenário peculiar da minha rua, está uma loja de "coleccionismo e velharias" - como bem se percebe, aqui os nomes das lojas, dos ofícios, das ocupações e das indústrias não têm em si qualquer ambiguidade; as lojas são exactamente aquilo que anunciam as letras nas ombreiras das portas, às vezes com pormenor a mais, às vezes já desusadas e gastas pelo uso, mas sempre honestas. Na loja de coleccionismo há muitos objectos de colecção: eu só reparo nos muitos copos de Coca-Cola e nos bonitos brinquedos (comboios e calhambeques, peões e bonequinhas antigas).

Se continuasse pela rua abaixo, teria de falar na "Fábrica de massas de farinha" e na "Classy Art Gallery & Interior Design", esta última menos honesta do que as outras porque a classe é inexistente e a arte também me parece limitada. Ao meu lado tenho um alfarrabista que, para minha tristeza, fechou as portas no dia a seguir à minha chegada mas que, para minha satisfação, as reabriu agora (só aos Sábados, parece-me), depois de ter conseguido salvar muitos livros do chicote do tufão Hagupit (que passou em Macau em Setembro). Qualquer dia passo uma tarde de Sábado no meu vizinho alfarrabista...

2 comentários:

Lapinbleue disse...

a tonalidade do texto parece-me uma nota dançando ligeiramente num movimento composto por edifícios, lojas, ruas e etc. É o movimento bastante convidativo.

Li Ling 李玲 disse...

Não sei o que seria do meu blog sem o toque poético da 韩丽丽 :) 谢谢!Sinto-me menos sozinha por saber que está aí a seguir de perto as minhas deambulações e divagações...