segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

As luzes bonitas de Hong Kong



Eu e a Fleur fomos passar uns dias a Hong Kong.

Andámos muito pelas ruas luminosas, iluminadas pelo omnipresente néon que nos anestesia a vista e as ideias. Dormimos na Mirador Mansion, na Nathan Road, a tal onde se cruzam todas as nacionalidades, a tal do anonimato exótico próprio das cidades realmente grandes, realmente populadas. Deixámo-nos levar pela corrente das multidões nocturnas de Mongkok. Percorremos as ruas comerciais de Tsim Sha Tsui, olhando sem cobiçar, admirando sem consumir. Apreciámos o movimento das gentes nos centros comerciais, onde não se tenta sequer resistir ao apelo consumista de Dezembro ou ao poder de atracção das musiquinhas e luzinhas dessas festas que servem apenas de apelo consumista de Dezembro, do ano inteiro certamente.


Não resistimos às escadas rolantes que nos levam da Queen's Road pelo Bairro do Soho acima com a Hollywood Road lá pelo meio, serpenteando pelas ruas estreitas cheias de bares e restaurantes exóticos ou típicos, iluminados e animados ou intimistas e românticos, para qualquer gosto, sempre com gente atraente apelando também. Sempre a subir, até chegarmos a lado nenhum. Hong Kong apela, sempre e em qualquer lugar. Bebemos uma cerveja... duas talvez, num desses recantos apelativos à vista de quem passa nas escadas que rolam; agora somos nós a montra animada de um bairro de charme boémio, uma espécie de Bairro Alto em versão rolante.


Não resisti, mais uma vez, aos estreitos eléctricos que se pavoneiam pela cidade confiantes, arrogantes até, certos do seu encanto. Os autocarros de dois andares e os táxis vermelhos ajudam a embrulhar Hong Kong numa sedução comparável à de Londres, embora aí os táxis sejam outros e estes eléctricos nem existam. É a vaidade que se parece.

Usámos repetidamente o Star Ferry para nos atravessarmos da península de Kowloon, onde fica a nossa agradável, barata e internacional pensão, para a ilha de Hong Kong. Que pena a travessia ser tão breve. A brisa é tão animadora, a água (muito mais limpa e menos mal-cheirosa do que recordava na impressão da visita de há muitos anos) relaxa, o balanço do barco embala. De manhã os reflexos do sol nos edifícios arquitectonicamente vanguardistas e impressionantes cegam, obrigam a fechar os olhos e a serenar. Ao fim da tarde a luz desce e amarelece e transforma os tons cinzentos noutras cores quaisquer, sem nome. À noite as águas parecem mais rápidas, a apressar o passo para não perder lugar na Sinfonia das Luzes...


A natureza tem lugar na frenética Hong Kong. Passeámos em parques e jardins botânicos, fizémos piqueniques, fomos ao Pico Victoria e demos uma heróica volta ao Peak Circle, uns longos 3 km de caminhada (que foram, agora a sério, muito breves e frescos e animados pela passagem de muita gente que aos domingos parece querer escapar do rebuliço dos néons omnipresentes). De lá de cima vemos tudo, os portos cheios de juncos e sampanas onde estão os barqueiros a aliciar os turistas com os seus preços competitivos para viagens de 15 minutos por entre barcos de pesca, com o som do trânsito ali ao lado. Vemos as ruas, escondidas por trás dos arranha-céus por onde o sol nunca consegue passar, sombrias em pleno meio-dia. Vemos os riscos deixados pelos carros que circulam aos milhares, emitindo as suas quantidades proporcionalmente impressionantes do dióxido de carbono que quase se vê na neblina estranha que invade o ar a qualquer hora do dia, dando à luz intensa uma densidade dúbia e uma cor quase bonita; a cor da poluição é quase bonita.


Fomos ao porto de Aberdeen (chamado assim por se assemelhar, aos olhos dos ingleses, ao porto escocês com o mesmo nome) e aos restaurantes flutuantes. No porto de Aberdeen estavam juncos e sampanas com barqueiros a aliciar os turistas com os seus preços competitivos para viagens de 15 minutos por entre barcos de pesca, com o som do trânsito ali ao lado... Nós fomos aliciadas, mas não fomos. Uma senhora idosa pediu-me 10 HKD pela fotografia que lhe tirei, primeiro à socapa, de soslaio, depois com pose de fotografia que custa 10 HKD. Não aceitou quando lhe estendi o dinheiro. O porto é um lugar tão diferente do mundo ali ao lado. Apesar do som do trânsito nas estradas vizinhas, apesar dos motores de barcos que passam, apesar da luz bonita da poluição que invade o ar da cidade toda, ali há outro passo, outro ritmo, outras velocidades. O peixe seca lentamente, secado em redes próprias para o efeito. O camarão é lentamente escolhido e informalmente catalogado para a venda, mais tarde. As mulheres conversam devagar enquanto as mãos procedem à recolha e selecção, cuidadosa e lenta, da matéria-prima. Em todo o lado mulheres, velhos e jovens nos recusam fotografias, levantando a mão de negação ao mesmo tempo que fazem pose e desejam ter ficado bem.


Passámos no Mercado das Flores, visitámos o Jardim dos Pássaros. São curiosos os senhores que passeiam com olhar de orgulho as suas bonitas gaiolas com passarinhos silenciosos e envergonhados. Quase pensei trazer uma bonita gaiola com um pássaro silencioso para me fazer companhia em Macau... Mas deixei os passarinhos em paz, quietos nos seus arrufos e conversas discretas. Não têm culpa da minha ocasional solidão.


Gosto muito de mercados. Não podíamos deixar de ir ao Temple Street Night Market, cheio. Cheio de gente, de barraquinhas de bugigangas variadas, de comida convidativa, de preços imbatíveis como só podem ser os preços de bugigangas, de velhotes de ar simpático que nos olham com estranheza, estranhando-nos como se este mercado não fosse visitado por todos os turistas que passam por Hong Kong, como se não vissem diariamente mulheres ocidentais de olhos grandes e feições exóticas, exóticas aos seus olhos (rasgados e orientais).


Gosto de observar as pessoas. O guia American Express Top 10 Hong Kong que a Filipa me emprestou tem, nas páginas dedicadas a Kowloon se não me engano, toda uma secção dedicada a "locais para observar as pessoas". Entendo perfeitamente. Eu viajo também para observar as pessoas. Nas ruas, no metro e no autocarro; nas passadeiras ao nos cruzarmos; sentadas nos bancos de jardim a pensar na vida; sentadas nas cadeiras das carruagens a pensar no que vão comer ao jantar; em pé a tentar um equilíbrio instável enquanto reflectem nos planos de fim-de-semana, na resposta que deviam ter dado ao patrão no trabalho, na resposta que não deviam ter dado a outro alguém qualquer; em pé nas filas para comprar bilhetes, de olhos vidrados a enumerar os produtos a comprar no supermercado da esquina antes de chegar a casa... Gosto dos olhares alheados dos utilizadores de iPod que entram numa dimensão distante enquanto fisicamente se transportam para uma dimensão real, talvez não tão interessante, talvez não muito musical. Cada um tem uma história completa, complexa, cheia de dimensões que todos os outros desconhecem, que ninguém sente nem entende. Milhares de filmes de argumentos originais a circular todo o dia nas carruagens dos metros em todas as cidades do mundo... e não chegamos a ver nenhum, entretidos nas nossas próprias dimensões, com argumentos de originalidade relativa...


Comemos em "mercados de comida" dos quais não mostro pormenores por saber que a minha mãe se afligiria com a ineficácia da ASAE local... sítios verdadeiros, genuínos, toscos e transparentes. Comemos num indiano na Chungking Mansion. Comemos comida rápida, comemos comida lenta também. Não temos problemas com a comida, ela também não tem connosco. Há coisas comestíveis em todo o lado. É verdade que sinto saudades de um caldo verde, um cozido à portuguesa da minha mãe, uma feijoada da minha mãe, um bacalhau bem feito em qualquer lado. A lembrança dos sabores e dos cheiros, do azeite e do pão molhado no azeite, dos almoços de domingo em minha casa... deixa-me nostálgica, admito. O paladar exerce uma impressão muito forte no departamento cerebral dedicado às recordações. Mas comer... posso comer quase qualquer coisa, em qualquer lado.


Já voltei a Hong Kong. Desta última vez, deparei-me com um estranho protesto: contra as torturas de praticantes de Falun Gong (uma arte de meditação actualmente proibida na China). O senhor nas imagens limitou-se a manter na mão o objecto cortante.

Vou voltar muitas vezes a Hong Kong. Para ir ao cinema e às compras, para andar durante horas por ruas cheias de gente e de histórias e de vida. Para tentar apanhar a luz mais bonita do dia, nas ruas de ar saturado de poluição. Já voltei ao Soho com a Prof. Han Li Li, saboreámos um vinho tinto da Toscana enquanto víamos passar a gente que rolava nas escadas rolantes do Bairro Alto rolante de HK.


7 comentários:

Lapinbleue disse...

o artigo mostra um ar nostálgico, pelo menos para mim. Apesar de poluição e sombrias no pleno meio-dia, a sua beleza destaca-se na interacção entre o antigo e o moderno, o ocidnetal e o oriental. Os teus olhos mostraram-me um mundo maravilhosamente particular de Hong Kong. Espero que um dia possamos passear juntos outra vez em Hong Kong.

Já regressei a Macao.

Li Ling 李玲 disse...

谢谢老师!Penso que teremos muitas oportunidades nos 8 meses que faltam :) Aproveitei para ir ao cinema em HK e vi 梅兰芳 ("Forever Enthralled"), muito bonito visualmente, muito romântico e triste no enredo. 回见!

Anónimo disse...

Isabel,

perco-me de forma mágica e apaixonada nas suas fotos e textos e......... assim fico a viajar!!

fico feliz por saber que está bem e a viver fantásticas experiências....... ainda que já com alguma saudade do nosso caldo verde!!!

abraço e um ano de 2009 com muitas e boas aprendizagens e inesquecíveis experiências,

graça seco

Anónimo disse...

Olá Belinha tudo bem por aí ? Já vejo que a menina se está a divertir muito ,trabalho não se fala ! Mas também vejo que as férias aí são grandes ! fiquei encantada com a maneira tão atraente que falas do país e dessa aventura linda ! Quantos de nós gostariamos de estar na tua companhia e desfrutar dessas paisagens ,que contadas por ti até em vez de vermelho é cor-de-rosa .bjs e continua bem disposta para nos contares a continuação do filme ..bjs

Anónimo disse...

Para não teres trabalho para adivinhar quem te fez o comentário a cima ,fui eu Leonor, a que está sempre atenta ao que pões de novo.
bjs

Anónimo disse...

No Domingo passada a mãe fez um belo cozido à portuguesa :-) e também comi um bacalhau muito saboroso em Gouveia com a Isabel e a Carine quando íamos a caminho da Serra da Estrela...É só para te fazer inveja ;-)
Tive que ir ao dicionário ver o que são sampanas.
Também gostei da 'cor quase bonita da poluição' e do 'Bairro Alto rolante de HK'!

Beijos
Mano mais velho

Li Ling 李玲 disse...

Pois, o estômago é responsável por uma parte das saudades ;) As outras partes não têm que ver com o paladar, dividem-se pelos sentidos todos... O Skype ajuda, mas ainda não permite um abraço virtual, por exemplo. Nem transpõe os cheiros, nem o calor de um cházinho a dois. O caldo verde posso fazê-lo eu aqui em casa, mas não posso cozinhar as muitas sensações que lhe associo. E assim se aprende, ao cozinhar sensações novas: à custa de novos sabores, em cima de outros cheiros, na descoberta de novos toques. Mas isso pode ser tema de outra mensagem qualquer.