Parte 1: Pátio da Eterna Felicidade, Jardim de Camões
Já passei os 100. Cem dias passados no espaço da minha rua macaense. Fui eu que quis viver no centro histórico, onde Macau ainda se parece à cidade que visitei há 14 anos e ainda não se transformou numa sucessão de edifícios lasveguianos como os que se mostram aqui perto, noutras ruas da cidade.
Vou correr todos os dias, ou três vezes por semana, algumas semanas apenas uma ou duas vezes por semana, para o Jardim de Camões. A caminho, atravesso o Pátio da Eterna Felicidade onde a felicidade eterna parece ter alguma relação com as garrafas vazias que aí se amontoam e com o vagar dos gestos de um ou outro senhor com quem me cruzo na travessia, transferindo cestos de um canto do pátio para o outro canto do pátio, sem que eu chegue a perceber qual é, afinal, o destino final das garrafas vazias. Os cestos estão sempre cheios. Atravesso o Pátio da Eterna Felicidade mais pela poesia do nome do que por me encurtar o caminho; gosto da luz esverdeada do corredor que me leva ao pátio, do cheiro fermentado que fica no fundo das garrafas vazias, de pensar no que terá justificado o encanto do nome neste pátio estreito e sem encantos para além do nome...
O Jardim de Camões é grande e escuro à hora da noite a que vou para lá correr e usar as máquinas amarelas do ginásio grátis onde além de mim apenas velhotes chineses se exercitam. Não se pense que é pela facilidade dos exercícios que apenas velhotes chineses se exercitam, os velhotes chineses mantêm uma forma invejável e um ritmo não muito fácil de acompanhar. Já ouviram falar de funerais de velhotes chineses...? Os velhotes mais velhotes são quase ternurentos nas voltinhas que dão ao pátio da entrada do jardim, lenta mas decididamente movendo os braços em movimentos circulares e mirando-me às vezes de soslaio e às vezes provocadoramente a cada nova volta em que passam por mim, eu a transpirar no esforço de acompanhar a velocidade do velhote na bicicleta do lado. Ontem acabou-se-me a música do iPod a meio da bicicleta. Não quis interromper a corrida para não deixar os corredores vizinhos chegar mais longe mais depressa do que eu. Deixei-me ficar de auriculares postos, a correr. Os sons do jardim foram chegando aos poucos. Do lado de fora um cão ladrava zangadamente (desmistifico aqui a ideia dos cães comidos em Macau: em Macau não se come cão e o cão é o animal de estimação preferido de muito boa gente) e alguém discutia, ou conversava em voz demasiado alta (a mim parece-me sempre que discutem). Depois o guincho das máquinas amarelas a precisar de óleo e o estalido nervoso das lâmpadas com mau contacto nos candeeiros do jardim. Depois as tagarelices, imperceptíveis antes do silêncio do meu iPod, dos velhotes que não se exercitam e ficam nos bancos de jardim a olhar com olhar crítico os exercitantes. Os passos da velhota mais velhota em marcha às voltas do pátio da entrada do jardim. Uma televisão a passar de canal em canal pelas mãos de alguém que se aborrece com a programação televisiva, por trás duma janela atrás duma varanda num prédio ao lado do jardim, não consigo perceber qual. O cão ainda ladra, alguém ainda discute, as juntas das máquinas amarelas ainda chiam, os velhotes sentados ainda gozam os velhotes que se exercitam, e a mim. Ouve-se muito quando a música acaba a meio da bicicleta, à noite no Jardim de Camões.
Mais para dentro do jardim, vários senhores reúnem-se a jogar às cartas, atrás do busto de Camões escondidos "Por mares nunca dantes navegados", o canto dos Lusíadas gravado na pedra em chinês e em português. Muitos namorados namoram nos recantos do jardim. Meninas do colégio ainda vestidas com as fardas do colégio riem tolamente e partilham segredos de tolas paixões colegiais. Meninos de colégio já com as fardas do colégio desfraldadas lutam, na brincadeira, embora a mim me pareça um bocado a sério de mais.
1 comentário:
a vida lenta e regular faz bem a saúde física. Ainda bem que mantem também uma observação mentalmente magistral enquanto muitos já vêm perdindo na vida lenta.
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